Tuesday, April 26, 2011

Gettier, o "one-hit wonder" da filosofia

Epistemologia é um ramo da filosofia que estuda o conhecimento humano (o que é, como ocorre etc.). Disso a maioria de nós já sabe. E, desde os tempos do velho Plato, a epistemologia é uma grande fonte de problemas cabeludos. Perguntas aparentemente simples quase fazem explodir a cabeça de gente como eu. De todas as perguntas, algumas das mais tenobrosas são:

Mas, e aí, que diabos é o conhecimento? O que difere um conhecimento de uma opinião, por exemplo?

Na visão mais clássica possível, para uma proposição ser considerada conhecimento, ela precisa estar passar pelo crivo dessas três condições:
(a) precisa ser uma crença (i.e. alguém precisa acreditar na tal proposição);
(b) precisa ser verdadeira; e
(c) precisa ser justificada (i.e. a pessoa que crê ou profere a proposição precisa ter boas razões para sua crença).

Simples, não? Pois é. Até 1962, tudo ia bem.

Mas aí, em 1963, Edmund Gettier publicou um artigo intitulado "Is Justified True Belief Knowledge?", no qual ele basicamente provou, com uso de contra-exemplos, que, diferentemente do que se havia acreditado desde os idos da filosofia antiga até 1962 (!!), conhecimento não é apenas uma crença correta justificada.

Gettier faz desabar a fundação da epistemologia em uma artigo de três míseras páginas, onde descreve dois contra-exemplos à tese clássica.

O pior é que os exemplos de Gettier são até meio confusos. O que aconteceu foi que, depois desse artigo, outros filósofos pegaram o argumento principal e desenvolveram exemplos mais claros (e, algumas vezes, mais elaborados).

Uma forma resumida (talvez simplista, mas sejam solidários...) de se apresentar a refutação de Gettier às três condições acima é a seguinte:

Imagine que eu vejo um caderno azul na mesa da sala da minha casa e que eu tenha evidências suficientes para crer que esse caderno pertence à minha mãe (suponhamos, por exemplo, que eu vi minha mãe comprar um caderno azul algumas horas antes). E eu também sei, digamos, que minha mãe tem R$10 na carteira (porque, suponhamos, quando ela foi comprar caderno, comentou comigo: "Puxa, só tenho R$10 na carteira!).

Assim, eu formulo a proposição: "A dona do caderno azul que está em cima da mesa tem apenas R$10 na carteira" (por transitividade de identidade).

Suponhamos, então, que eu chegue mais perto do caderno, e descubra que, na verdade, ele é um caderno meu, antigo, do qual eu já não me lembrava. E suponhamos ainda que, ao abrir minha carteira, eu descubra que tenho exatos R$10 lá dentro.

Nesse caso, pode-se dizer que minha crença de que "a dona do caderno azul tem apenas R$10 na carteira" é justificada e verdadeira, embora não pareça poder ser qualificada como "conhecimento". Poque "no fundo, no fundo", eu não sabia que a doa do caderno azul tinha R$10 na carteira. Isso ocorreu apenas por uma enorme coincidência. Sacaram?

Essa é uma paráfrase/adaptação do primeiro exemplo de Gettier. O segundo exemplo envolve disjunção (mas esse vocês podem ler diretamente no artigo dele, agora que já captaram a ideai principal - senão o post fica longo e repetitivo demais...).

A partir desse tal artigo, então, desenvolveu-se toda uma linha de argumentos/problemas, geralmente chamados Gettier-style arguments/problems (argumentos/problemas estilo Gettier). Em resposta a esses argumentos, alguns filósofos tentaram formular teorias mais elaboradas de o que é conhecimento, como teorias onde se insere uma quarta condição à definição, como a JTB+G (justified true belief + Gettier clause), ou seja: crença verdadeira justificada, com um aditivo de uma cláusula chamada "cláusula de Gettier", que exclua situações como as do exemplo acima.

Alguns filósofos alegam ainda que, em contra-exemplos como os de Gettier, há, sim, conhecimento. Uma linha mais ortodoxa de filósofos tenta, por outro lado, provar que em exemplos estilo Gettier não há crença justificada verdadeira. E é aí que os argumentos ficam realmente refinados e interessantes.

Curiosamente, no entanto, Gettier nunca publicou mais nada. Esse mísero artigo de três paginas garantiu sua carreira (hoje em dia, ele é professor emérito na University of Massachusetts Amherst) e sacodiu a epistemologia de um jeito que há séculos (ouso dizer!) não se fazia. Gettier é o maior one-hit wonder da filosofia.


Para ler mais:
William P. Alston. Beyond Justification: dimensions of epistemic evaluation. Cornell University Press. 2006.
E todos os livros do Ernest Sosa, John Greco e artigos do Stephen Grimm.