Thursday, November 20, 2014

Nesse dia...

A terceira quinta-feira do mês de novembro é, segundo a UNESCO, o dia mundial da filosofia. Não sei se por conta disso ou por mera coincidência, algumas pessoas estavam comentando (na vida real e na vida virtual) sobre por que escolheram fazer filosofia.

Eu já contei minha história pra muitas pessoas e, de tanto tempo ter passado e de tanto eu ter contado, confesso que cheguei àquele ponto em que não sei ao certo quando a decisão foi tomada, nem o porquê exato, mas tem a ver com um contexto bastante especial e com algo que me mantém convencida de que eu tomei a decisão certa.

Antes de 2001, quando comecei minha graduação na PUC-SP, eu nunca tinha tido uma aula de filosofia. No colégio em que eu estudei, não havia filosofia (nem nada que se aproximasse disso) na grade curricular. Fora "O Mundo de Sofia" (...) e algumas palestras do Gabriel Chalita (que foi diretor do meu colégio; não me perguntem!), meus conhecimentos filosóficos eram nulos. Considerando que o conteúdo dessas duas fontes é completamente negligenciável, posso afirmar com segurança que, quando eu me matriculei no curso de filosofia, eu não tinha a menor idéia do que estava fazendo nem do que esperar.

Meus interesses na época eram meio espalhados: as biológicas nunca foram meu forte, mas entre humanas e exatas, a briga era acirrada.

E aí fui parar na filosofia. Minhas intenções na época eram bastante voltadas para a política. Não para a filosofia política (eu nem tinha idéia de o que isso era, à época), mas a política-política, na prática: governo, ONGs etc. Mas logo vi que isso não era pra mim.

Num curso de primeiro ano, acho que um curso de história da filosofia, lemos montes de Platão e Aristóteles. Acho que foi no segundo semestre que lemos a Ética a Nicômaco e a Política. E foi aí que eu entendi o que estava fazendo ali. Conforme eu ia lendo Aristóteles (principalmente a Política, acho), eu ia discordava fortemente de algumas das coisas que ele dizia. Mas os argumentos! Or argumentos aristotélicos eram tão bons, tão bonitos, tão bem construídos! Eu discordava de algumas das conclusões, mas não sabia nem por onde começar a refutar as premissas. Foi ali que eu aprendi, definitivamente, que "achar" alguma coisa não era o bastante; que a genialidade estava justamente na confecção dos argumentos, em como provar que estamos certas. Talvez o problema seja só que eu seja teimosa, mas discordar de alguém de maneira intuitiva mas conceder que seu argumento é convincente e sentir a necessidade de se curvar a ele pelo exercício da razão é uma coisa que só a filosofia conseguiu me ensinar. E foi nesse momento em que eu decidi que era isso que eu queria fazer para o resto da minha vida. Como um colega escreveu uma vez, parafraseando alguém (já não lembro quem): "há mais beleza num argumento que  no mundo." Eu ainda acho (talvez ingenuamente) que isso seja verdade.

Não quero romantizar a coisa e ser piegas demais. Eu me arrependi inúmeras vezes dessa decisão ao longo desses 13 anos que se seguiram. Estudar filosofia é difícil, frustrante, exige dedicação e paciência sobre-humanas e a recompensa material, na maioria dos casos, é pouca. Mas a recompensa final, o "momento ah-ha!" em que a gente compreende um argumento, ou em que a gente finalmente consegue refutar um argumento é, apesar de fugaz, umas das experiências mais incríveis que um ser racional pode ter. (Eu sempre concordei com aquela história aristotélica do telos da vida humana e de sua relação direta com o logos e a eudaimonia.)

Dia sim, dia não, quando não me arrependo de ter posto os pés na universidade no dia em que fiz minha matrícula na filosofia, quando não estou fazendo contas no final do mês pra ver se o dinheiro vai dar, eu sinto que é extremamente gratificante poder fazer o que eu faço.

Hoje, uma aluna, que é também uma colega (outra das vantagens da filosofia!), estava falando justamente sobre como os estudos parecem menos chatos (e o trabalho idem) quando a gente faz o que a gente gosta. Ela estava querendo nos lembrar dessa regra tão simples, e que a gente esquece tão frequentemente: o importante é fazer o que a gente gosta. Caveat lector: é importante fazer o que a gente gosta, se a gente tiver um prato de comida duas vezes ao dia e onde morar (e meios de pagar aluguel, conta de luz etc.). Porque, se nos "dia sim" a gente se sente realizada e próxima a essa eudaimonia, nos "dia não", não há beleza de argumento que baste. A filosofia é a melhor pièce de résistance para almas curiosas (e possivelmente torturadas). Mas um prato de comida e o mínimo de dignidade de sobrevivência são as grandes pièces de résistance (e condições sine quibus non) da filosofia.

Acho que o dia de hoje não é nem um "dia sim" nem um "dia não". Vou fingir que nunca ouvi falar do princípio do terceiro excluído e propor que hoje é um dia "talvez". Essa história do dia da filosofia da UNESCO é toda muito bonita, mas infelizmente, a filosofia profissional (que é quase 100% acadêmica) ainda é uma área extremamente aristocrática e, apesar de eu apreciar o esforço da UNESCO em promover a filosofia, acho que a filosofia acadêmica, de maneira geral, se identifica muito pouco com esse ideal de que a “filosofia é uma disciplina que encoraja o pensamento crítico e independente e é capaz de promover uma melhor compreensão do mundo e promover a tolerância e a paz.” (tradução livre do site da UNESCO) Acho tudo isso muito justo e muito bonito. Ficaria mais bonito ainda num discurso de miss. A verdade é que a maioria dos filósofos (e das filósofas) já está bastante ocupada escrevendo tese, preparando aula, orientando aluno e tentando sobreviver num mundo que não se reconhece isso como trabalho importante. Aprecio a idéia da UNESCO em declarar o dia, mas critico um pouco a ingenuidade de como ele foi concebido: por enquanto, escolho não acrescentar à minha lista de afazeres (por sí só frustrantes) "promover a paz mundial". (Acho que alguém entendeu mal o "super-homem" do Nietzsche...)

O mundo acadêmico já é muito cheio de arrogância. Prefiro tentar não inflar meu senso de importância. Meu objetivo atual é entender que diabos Buridan estava propondo em seu comentário à Ética a Nicômaco. Se isso, de algum modo, conseguir levar à paz mundial, eu ficaria bastante surpresa, mas tanto melhor.

Feliz dia mundial da filosofia!