Wednesday, November 11, 2009

Dá pra confiar nos cientistas?

Quando pensamos em ciência e no modo como as pesquisas científicas são desenvolvidas, podemos pensar em grandes avanços tecnológicos para o bem da humanidade, ou em um futuro completamente apocalíptico. Vamos pensar na segunda possibilidade, porque filósofos são assim, meio mórbidos mesmo (afinal, se não houvesse problemas e complicações no mundo, não teríamos emprego).

Vamos partir de uma premissa básica: interesses individuais e situações contingentes geralmente influenciam as decisões feitas por um grupo de cientistas e/ou pesquisadores.
Tem gente que vai negar, ok, mas é fato que, supondo, por exemplo, que as agências financiadoras estejam alocando milhões de dólares para pesquisas sobre as asas da Drosophila melanogaster, que raios o cientista vai fazer estudando as patas do pobre inseto sem ganhar um tostão? Mas e se ele estiver convicto de que há mais futuro para o desenvolvimento da ciência estudando as patas da mosca, e não as asas? Ele vai abdicar de contribuir para o avanço da humanidade (e das patas das moscas) por conta de uma conta bancária mais recheada com dólares de fundações de pesquisa?
Para entendermos como isso é um grande problema filosófico, vamos considerar o case-study apresentado por Bruno Latour e Steve Woolgar em A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. No capítulo 4 do livro, Latour e Woolgar descrevem as atividades cotidianas de um laboratório e comentam um caso específico em que
[…] fica claro que a negociação entre [pesquisadores…] não depende exclusivamente de sua avaliação da base epistemológica para seu trabalho. Em outras palavras, embora uma visão idealizada da atividade científica possa retratar os participantes avaliando a importância de uma investigação em particular para a expansão do conhecimento, as [… passagens das conversas entre os dois pesquisadores] mostram que considerações completamente diferentes estão envolvidas. (p. 157 da edição em inglês; tradução livre)
Mais adiante, eles acrescentam que “a mais importante característica desses tipos de troca [entre cientistas no laboratório] é que eles são vazias de asserções que sejam ‘objetivas’no sentido de que estão além da influência de negociação entre os participantes.” (p. 158 da edição em inglês; tradução livre)
O que estas passagens mostram é que há uma variedade de elementos contingentes que fazem parte do processo de decisão dos cientistas, e que estes nada têm a ver com a busca da verdade ou a tentativa de se distanciar do erro (o que, em teoria, é o objetivo último de qualquer ciência). Em uma situação em que há dois paradigmas conflitantes, um grupo de cientistas em um dado nicho pode escolher um certo paradigma e rechaçar o outro apenas com base em qual tem pesquisas de mais autoridade o corroborando, ou qual os permitiria se candidatar, por exemplo, a uma verba de pesquisa que culminaria em uma publicação e, conseqüentemente, torná-los mais reconhecidos em sua área de pesquisa, etc.
É nesse ponto caótico e relativista que nos deixa a filosofia da ciência de Thomas Kuhn (de quem eu falarei mais, em momento oportuno).
Deve haver na ciência, no entanto, pelo menos um nível básico de vontades e objetivos compartilhados, que não permitam que as ciências e a escolha de paradigmas científicos sejam aleatórias e relativistas.
Este nível compartilhado é assegurado pelo aspecto histórico das ciências e a maneira pela qual os cientistas em paradigmas conflitantes – embora não concordem em relação a qual deva ser o paradigma científico vigente – possam, mesmo assim, concordar em relação ao ponto de partida que tiveram para o desenvolvimento de suas teorias, i.e. eles ainda podem concordar sobre a história do desenvolvimento daquela ciência pelo menos até um certo ponto.
Então, não só a maioria das verbas de pesquisa não é tão alta para justificar uma completa prostituição ensandecida dos temas de pesquisas científicas, mas também há um ponto de partida comum às ciências, o que sempre faz com que (pelo menos nós, pesquisadores) fiquemos de olho uns nos outros. Assim, essa questão histórica, que foi bastante aprofundada em relação à ciência por caras como Alasdair MacIntyre (principalmente no artigo “Epistemological crises, dramatic narrative and the philosophy of science.” The Monist. v. 60, n. 4, October 1977, pp. 453-472.), não apenas nos ajuda a limpar um pouco a barra do Thomas Kuhn, que nos entregou essa bomba apocalíptica, mas também nos devolve um pouco a confiança nesse pessoal que está por aí, nos laboratórios. Ufa!

Thursday, September 10, 2009

"Mas a física diz que..."

O fisicalismo é a teoria da mente dominante na filosofia contemporânea. Como o nome sugere, tem a ver com física. Para quem não estuda física, pode parecer irrelevante como se chegou a essa teoria da mente, mas ela praticamente rege o modo como vivemos, lemos jornal, assistimos à televisão, e sustenta nossa fé na ciência e nas máquinas mágicas daqueles programas tipo C.S.I. e afins. Então, vamos ver o que é esse tal fisicalismo.
Segundo o fisicalismo, tudo (indivíduos, propriedades, eventos) é físico. Algo é um indivíduo ou evento físico se tem alguma propriedade física. O principal argumento para sustentar essa visão do problema mente-corpo é um argumento de generalização indutiva a partir de sucesso científico passado. A estrutura do argumento é a seguinte:
Todos os As observados até então são X.
:. Todos os As são X.

Isso significa que, através da história, quando as pessoas tentaram explicar fenômenos apelando para entidades não-físicas, essa tentativas acabaram sendo mal-sucedidas, enquanto as explicações físicas funcionaram. Quando, por exemplo, tentou-se explicar fenômenos como raios e trovões, ou o movimento dos planetas, com referência, digamos, aos deuses, tais explicações falharam. Tais fenômenos foram, então, descritos pela física de uma maneira muito mais precisa, que também premitia a realização de previsões. Isto é, enquanto as explicações prévias atribuíam fenômenos sem explicação à ira dos deuses, com a explicação dos movimentos planetários através da física, os cientistas puderam explicar e prever fenômenos como eclipses, e sem o apelo ao sobrenatural. O mesmo ocorre, por exemplo, quando eu levanto meu braço: a física pode explicar meu desejo de levantar o braço em termos físicos (em termos neuronais, por exemplo), então, por que apelaríamos a entidades mentais, se as explicações que vão além da física estão fadadas a falhar?
Segundo o fisicalismo, a física permite que façamos isso mesmo se escolhermos um vocabulário que não é próprio da física. Quando eu uso a palavra “papel” para descrever a coisa em que eu esbocei este texto, eu estou, na verdade, usando a palavra “papel” para fazer referência a uma coleção de partículas, o que não significa que eu esteja postulando uma entidade adicional além daquelas da física. O mesmo ocorre com as propriedades dessas coisas. Se eu quiser dizer que este papel é sólido, o predicado “é sólido” não é uma propriedade adicional àquelas descritas pela física; é apenas uma maneira de expressar uma relação específica entre aquelas partículas.
O mesmo procedimento pode ser usado quando descrevemos uma pessoa: quando usamos os termos “humano”, ou, especificamente, digamos, Mary Stuart, rainha da Escócia, para nos referirmos a um indivíduo, estamos nos referindo a uma coleção de partículas específicas. Do mesmo modo, quando eu digo que Mary Stuart, rainha da Escócia, sentiu dor quando o primeiro golpe de guilhotina não acertou seu pescoço, e sim a parte de trás de sua cabeça, não estou expressando uma propriedade além daquelas da física. Estou apenas usando a expressão “sentiu dor” para falar de uma relação complexa entre partículas físicas fundamentais (e sua transmissão pelas fibras C, por exemplo, no caso de Mary Stuart).
Assim, vemos que tudo é físico pois tudo pode ser descrito com o uso de expressões da teoria física. Assim, isso nos fornece razões suficientes para crer que o fisicalismo está correto.
Essa foi uma visão bem resumida da história. Mas o argumento até que é convincente, afinal, a física esclareceu bastante coisa, de fato. Mas a conversa começa a complicar quando transpusermos o fisicalismo a histórias mais complexas e resolvemos falar de cores, sensações, zumbis e outras mágicas. Então, o outro lado da história, um dos argumentos contra o fisicalismo, fica para o post abaixo.

Monday, August 10, 2009

O dilema de Hempel

O fisicalismo foi explicado aí acima. Parece uma coisa muito abstrata, complicada, tal, mas não é. Muitos de nós partimos de pressuposições fisicalistas no nosso dia-a-dia. Muita gente, mesmo sem conhecimento muito aprofundado de ciência, tem uma espécie de crença mágica em aparelhos de medição e acessórios de laboratório. Dessas coisas que se vê em C.S.I. ou programas de ficção científica, tipo Fringe: máquinas que transformam ondas cerebrais de pessoas mudas em voz computadorizada, eletrodos que monitoram sinapses e reproduzem em telão imagens mentais das pessoas e por aí vai.
Quem acredita nisso, ou melhor, quem acredita na tese de que todos os estados humanos são físicos (i.e. não existem estados mentais, ou estados mentais podem, em última análise, ser reduzidos a estados físicos) pode ser considerado fisicalista. O fisicalismo parece, de fato, ter bastante credibilidade. Mas muita gente já formulou argumentos contra ele. Exemplo disso é Carl Gustav Hempel, matemático, físico e filósofo (aquele do empirismo lógico).
O dilema de Hempel é um argumento contra o fisicalismo. O que ele fez foi atacar o fisicalismo dissolvendo o conceito de “física”. O argumento é o seguinte:
(1) Se o fisicalismo é verdadeiro, então a “física” será definida ou como relativa a um estágio incompleto da ciência ou a um estágio ideal, completo, de ciência.
(2) Se a “física” é definida como relativa a um estágio incompleto da ciência, então, o fisicalismo é falso.
(3) Se a “física” é definida como relativa a um estágio ideal, completo, de ciência, então falta conteúdo ao fisicalismo.
.∙. O fisicalismo ou é falso ou é falho em conteúdo. [de 1, 2, 3 por dilema construtivo]

Pouquíssimas pessoas em sã consciência (incluindo os próprios fisicalistas) negariam que a ciência evolui. A ideia fisicalista de que tudo é físico (i.e. que há propriedades físicas e que todas as propriedades são físicas) deve ser tomada junto de sua visão de que as ciências naturais – paradigmaticamente, a física – descreve e explica. No entanto, como definiríamos a física, se ela aparenta ser algo mutável?
Parece que nos restam duas possibilidades:
a) Podemos definir a física como relativa a um estágio incompleto da ciência;
b) podemos definir a física como relativa a um estágio completo, ideal, de ciência tal como ela se apresenta.
O problema com a primeira possibilidade é que ela faria com que o fisicalismo alegasse que tudo pode ser exaustivamente explicado pela física atual, o que obviamente não ocorre, já que há vários fenômenos ainda não explicados pela física, como a matéria escura. É muito provável que nosso atual entendimento do universo físico pode ser falsificado e substituído por outro, melhor, mais abrangente. Assim, como fisicalismo se apóia na física atual, i.e. um estágio incompleto da teoria física, ele deve ser falso.
O problema com o segundo é que se dissermos que a física é definida em relação a uma teoria física completa e o fisicalismo, por sua vez, alegasse que tudo pode ser descrito por esta teoria física completa. O que se segue é que simplesmente não saberíamos o que o fisicalismo está dizendo, já que ainda não atingimos esse estágio de uma teoria física completa; assim, o fisicalismo seria falho em conteúdo.
Finalmente, as duas possibilidades nos levam à conclusão de que o fisicalismo ou é falso, ou é falho em conteúdo, o que deveria fazer com que pensássemos bem antes de ficarmos fascinados com os avanços tecnológicos a ponto de acreditarmos que será possível, um dia, fazermos coisas como ler pensamentos através de tomografias computadorizadas e coisas assim.

Friday, July 3, 2009

Além do pôr-do-sol

No livro de ficção científica To Sail Beyond the Sunset, Robert A. Heinlein escreveu que o propósito da metafísica é fazer perguntas como "por que estamos aqui?" e "o que acontece quando morremos?". Segundo ele, fazer tais perguntas é trabalho da metafísica, mas respondê-las não, pois quando se respondem a essas perguntas, se passa do campo da metafísica ao campo da religião.

Não concordo muito com a última parte, porque às vezes a metafísica oferece respostas (e respostas nada religiosas) às perguntas que coloca, mas é fato que o propósito principal da metafísica é não apenas fazer perguntas, mas fazer as perguntas certas.

Muitas vezes, grandes problemas filosóficos, científicos (e até existenciais!) chegam mais perto de uma solução porque uma pergunta antiga foi reformulada, agora de forma mais clara.

A proposta deste blog é essa: não é fornecer respostas aos grandes problemas da humanidade, mas tentar compartilhar um pouco de como as perguntas atuais estão sido postas e, consequentemente, como as respostas a elas estão sendo formuladas. A beleza da metafísca está, muitas vezes, na genialidade dos argumentos - e não na especulação sobrenatural.

A metafísca, ao contrário do que se pensa, tem seguido a chamada "Ciência" (com-letra-maiúscula), i.e. física, química e biologia, mais de perto do que se supõe. Eu vou tentar abrir essa janela.

Thursday, July 2, 2009

Meu big bang

- O que você vai estudar em Nova York?
- Fenomenologia.
- Fenô-quê?
- Fe-no-me-no-lo-gia.
- Hm. Tipo da psicologia?
- Não.

Pois me formei em filosofia, comecei o mestrado e, logo, me mandei pra NY, para fazer minha pesquisa por lá. Saí do Brasil com mil idéias sobre estudar a percepção humana e coisas afins, sempre do ponto de vista da fenomenologia (que pode ser inocentemente definida como "estudo dos fenômenos", mas isso é outra história, e será definida em outra ocasião).

No meio de uma das minhas pesquisas, um professor sugere:
- Husserl [filósofo alemão do início do século XX] fala bastante sobre ciência. Mas seu modelo de ciência é sempre a física. Às vezes também a matemática. Hoje em dia, no entanto, quando pensamos em ciência, pensamos, na maioria dos casos, na biologia. Mas Husserl sequer menciona a biologia. Um bom tema de pesquisa para vocês: o que Husserl teria dito sobre a biologia?

É fato que desde Kant (por conta de sua relação com a física newtoniana), o paradigma de ciência para a filosofia (para se fazer filosofia da ciência) é a física. Mas, recentemente, especialmente por conta da influência da filosofia americana nas questões práticas da ética, o foco está mudando para a biologia. E tem um monte de gente escrevendo sobre biologia, física, química, matemática e outras. E um monte de gente escrevendo sobre filosofia. E a intersecção desses conjuntos era um conjunto vazio. Até agora.

Foi mais ou menos assim que surgiu a ideia desse blog. Discutir, a partir do ponto de vista da filosofia, não apenas as ciência exatas, mas também as biológicas. Podem sair daqui criaturas mais bizarras que os piores erros de experimentos genéticos, mas se já colocaram até orelha nas costas de rato, colocar metafísica em microscópio não vai fazer tão mal.