Thursday, February 13, 2014

Vivência

Hoje, uma colega (Marianne Di Croce, que é professora no Cégep Saint-Jerôme) postou um texto no Facebook, que eu traduzo aqui (do francês), porque acho interessante que as pessoas entendam como é a experiência (= a vivência) da grande maioria das mulheres na filosofia:

Era uma vez uma jovem na filosofia (embora não tão jovem... na casa dos trinta!), que, após ter assistido à conferência de um amigo, teve o prazer de ir jantar com o amigo conferencista, três outros amigos e três "senhores" professores universitários. 

Habituada a esse tipo de situação em razão de seu percurso em filosofia (a única mulher à mesa), a jovem da filosofia não se preocupava mais que o normal. Afinal, com o tempo, ela aprendeu a tomar seu lugar em um mundo de universitários homens. 

Mesmo sabendo que ela talvez teria de fazer algum esforço e se impor nas discussões, a jovem da filosofia estava longe de duvidar que a situação seria tão caricatural: 

Enquanto as discussões políticas iam bem, a cada vez que ela lançava um idéia, ela era habilmente ignorada. A discussão continuava como se ela não tivesse dito nada. Se não fosse um de seus amigos que, se dando conta do ocorrido, fez retransmitir regularmente suas falas, tomando o cuidado de dizer "como a jovem da filosofia acabou de dizer, [inserir aqui as ditas falas, até então ignoradas]". A intervenção masculina tendo um efeito instantâneo, a discussão prosseguia, então, levando em conta o que a jovem da filosofia havia dito. 

Naquela noite, ela gostaria de ter podido filmar a cena, de tanto que o sexismo era evidente. Ela quase ria, de tanto que estava acostumada àquilo! Era uma dessas noites em que ela não tinha vontade de ter raiva, ela estava apenas um pouco cansada daquela repetição. 

O jantar terminou e a noite continuou em outro tom, cheia de amizades, risos e muitas cervejas. 

Nos dias que se seguiram, a jovem da filosofia contou a anedota muitas vezes, sublinhando a que ponto o sexismo era "apenas óbvio demais" naquela noite e que isso era quase engraçado. 

A jovem da filosofia constatou que ela tinha adquirido ferramentas o bastante para compreender as dinâmicas em jogo durante aquele jantar e saber que não era ela o problema. 

E ela estava bem orgulhosa de si mesma, de todo o seu percurso ao longo de anos, sabendo que, quando ela ainda era estudante, ela teria voltado de uma noite assim se sentindo idiota, insignificante e incapaz de ter uma conversa política inteligente. Mas hoje: não, senhora! Ela sabe que ela é inteligente e absolutamente apta a discorrer sobre o político e a política (além do mais, ela sabe muito bem qual é a diferença entre os dois! Pouco importa o que aqueles senhores teóricos da política pensam sobre isso). 

Ora, nos dias seguintes, ela pensou novamente sobre esse jantar e sobre cada vez em que esse tipo de coisa lhe aconteceu: em cursos, conferências, happy hours entre companheiros de classe ou entre colegas etc. 

E as inseguranças e as dores voltaram à superfície e a jovem da filosofia teve dificuldade em escrever os textos que tinha de escrever (na verdade, ela não tocou seu lápis), e ela se pôs a duvidar da pertinência de seu projeto de fazer um doutorado e... 

Enfim, a jovem da filosofia constata que, apesar do caminho percorrido, essas coisas deixam cicatrizes.

TL; DR: Não é nada (nada!) fácil para as mulheres na filosofia. Com o tempo, vai melhorando, mas nunca é fácil.

Wednesday, February 5, 2014

Reação

E tem aquelas pessoas (=eu), que não ficam só reclamando de sexismo, sexismo e sexismo e esperando que alguém, peferencialmente montado em um cavalo branco, venha fazer alguma coisa a respeito.

É por isso que, mesmo depois de alguma resistência inicial do departamento, quatro colegas e eu nos reunimos para fundar o grupo "Fillosophie", para promover o trabalho das pós-graduandas no departamento, encorajar as graduandas a continuar seus estudos em filosofia, e mudar a atmosfera do departamento.

Ontem tivemos nosso primeiro evento, que foi um sucesso. As outras universidades em Montreal gostaram da idéia e estamos encorajando todas a copiá-la. Não seria nada mal se ela se expandisse para esses cantos da América do Sul. Mas uma coisa de cada vez...

Monday, February 3, 2014

Humildade epistêmica

Essa semana, voltou à tona a tal história do Woody Allen e das alegações de abuso sexual e barracos outros com Mia Farrow e sua prole. E, como haveria de ser, todo mundo tinha uma opinião a dar: fãs incondicionais de Woody Allen de um lado (nem vou questionar aqui a idéia de "fã-zice" incondicional, que me parece absurda em si), e as pessoas que parecem exercer algum tipo de precaução em defender as pessoas que acusam Allen. Não vou entrar no mérito, aqui, de se são "vítimas" ou "supostas vítimas" (ugh!), justamente pelo que vem abaixo.

E tem aquela história de Sócrates e do sábio que é sábio porque não sabe que é sábio, "só sei que nada sei", ou qualquer variação anedótica da Apologia que constrói essa interpretação aí. Independentemente dos problemas óbvios de interpretação (fundamentalmente, faz muito pouco sentido crer que "Sócrates é sábio se e somente se ele acredita não ser sábio" ou que "Sócrates é sábio se e seomente se ele acredita não saber nada"), a humildade epistêmica ainda é vista como algum tipo de virtude. Ela é, no mínimo, o oposto da arrogância epistêmica.

Essa humildade epistêmica tem uma importância fundamental na filosofia da ciência, por exemplo, na avaliação de risco epistêmico e na reflexão sobre nossa construção de enunciados científicos baseados em conhecimentos produzidos por nossas próprias faculdades, e na idéia de que novas teorias científicas vêm sido elaboradas, e há, possivelmente, sempre novas alternativas de interpretação para substituir as que temos presentemente etc.

Mas a humildade epistêmica também pode servir de guia para a moralidade, se considerarmos que nossos juízos morais (no mínimo, alguns deles) são baseados em crenças (opiniões) e/ou conhecimentos -- sendo simplista e deixando de lado, é claro, possíveis problemas meta-éticos e objeções com bases céticas.

No fundo, o que quer que tenha acontecido no caso Woody Allen, com base nas informações que temos a nossa disposição, não temos como ter conhecimento (em algum sentido estrito) sobre o que realmente aconteceu entre Allen e Dylan Farrow (assim como não conhecemos, em toda sua extensão, todo o "barraco" entre Woody Allen e Mia Farrow). O mesmo vale para quaisquer outros casos controversos, como escândalos políticos. Um dos grandes problemas que temos ao avaliar conhecimento por testemunho é quando temos dois testemunhos contrários e não conseguimos avaliar objetivamente qual é válido/verdadeiro/mais apto. Podemos, é claro, apelar para as paixões (no caso, para a "fã-zice" incondicional), mas isso vai radicalmente contra a idéia de humildade epistêmica.

É importante evitar a arrogância epistêmica por razões como as que dá Ingrid Robeyns, quando descreve a maneira como lidamos com e compreendemos alguns tipos de experiências:
Minha preocupação é que essa categoria de experiências, diferenças, práticas e outras características da vida humana que não conseguimos entender sem a experiência de primeira pessoa é muito maior que o que geralmente presumimos. E, consequentemente, acreditamos que sabemos muito mais do que realmente sabemos. E uma outra consequência é que muito freqüentemente erramos em nossos juízos sobre aspectos de vida de pessoas significativamente diferentes de nós. De alguma maneira, me parece sábio e, possivelmente, uma pré-condição para a justiça social, que re-habilitemos a humildade epistêmica no seio de nossas práticas educacionais e sociais.*

Em seu blog, Stephen Mumford nos dá uma idéia de o que está em jogo no caso de verdades incognoscíveis (notem, no entanto, que ele não está falando especificamente do caso de Allen ou similar, mas sim de verdades incognoscóveis em geral). Ele diz:
Eu não tenho dúvida de que alguns dirão que isso não importa. Se não temos como saber qual das duas opiniões é verdadeira, há alguns que dizem que é uma escolha sem sentido. Alguns de nós, entretanto, não pensamos assim. A existência dessas verdades incognoscíveis, além de nossa capacidade de apreensão, nos enchem de um sentimento de espanto e fascinação. E um pouco de humildade epistêmica não é algo ruim, afinal.*

Isso não quer dizer que a discussão de casos como o de Woody Allen deva ser "tucanada". Mas imaginação moral e humildade epistêmica continuam, de alguma maneira, sendo vistas como características da pessoa sábia. Às vezes, o trabalho delas é apenas dissuadir as pessoas de, num afã de querer parecer descoladas, escrever bobagens em blogs, no twitter, no Facebook etc.  Às vezes, o melhor a fazer pode ser nos resguardar humildemente em uma posição de assombro, espanto, fascínio e admiração em relação a opiniões que não podemos construir. Não parece sábio sacrificar virtudes em prol da web 2.0.

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* traduções minhas.