E tem aquela história de Sócrates e do sábio que é sábio porque não sabe que é sábio, "só sei que nada sei", ou qualquer variação anedótica da Apologia que constrói essa interpretação aí. Independentemente dos problemas óbvios de interpretação (fundamentalmente, faz muito pouco sentido crer que "Sócrates é sábio se e somente se ele acredita não ser sábio" ou que "Sócrates é sábio se e seomente se ele acredita não saber nada"), a humildade epistêmica ainda é vista como algum tipo de virtude. Ela é, no mínimo, o oposto da arrogância epistêmica.
Essa humildade epistêmica tem uma importância fundamental na filosofia da ciência, por exemplo, na avaliação de risco epistêmico e na reflexão sobre nossa construção de enunciados científicos baseados em conhecimentos produzidos por nossas próprias faculdades, e na idéia de que novas teorias científicas vêm sido elaboradas, e há, possivelmente, sempre novas alternativas de interpretação para substituir as que temos presentemente etc.
Mas a humildade epistêmica também pode servir de guia para a moralidade, se considerarmos que nossos juízos morais (no mínimo, alguns deles) são baseados em crenças (opiniões) e/ou conhecimentos -- sendo simplista e deixando de lado, é claro, possíveis problemas meta-éticos e objeções com bases céticas.
No fundo, o que quer que tenha acontecido no caso Woody Allen, com base nas informações que temos a nossa disposição, não temos como ter conhecimento (em algum sentido estrito) sobre o que realmente aconteceu entre Allen e Dylan Farrow (assim como não conhecemos, em toda sua extensão, todo o "barraco" entre Woody Allen e Mia Farrow). O mesmo vale para quaisquer outros casos controversos, como escândalos políticos. Um dos grandes problemas que temos ao avaliar conhecimento por testemunho é quando temos dois testemunhos contrários e não conseguimos avaliar objetivamente qual é válido/verdadeiro/mais apto. Podemos, é claro, apelar para as paixões (no caso, para a "fã-zice" incondicional), mas isso vai radicalmente contra a idéia de humildade epistêmica.
É importante evitar a arrogância epistêmica por razões como as que dá Ingrid Robeyns, quando descreve a maneira como lidamos com e compreendemos alguns tipos de experiências:
Minha preocupação é que essa categoria de experiências, diferenças, práticas e outras características da vida humana que não conseguimos entender sem a experiência de primeira pessoa é muito maior que o que geralmente presumimos. E, consequentemente, acreditamos que sabemos muito mais do que realmente sabemos. E uma outra consequência é que muito freqüentemente erramos em nossos juízos sobre aspectos de vida de pessoas significativamente diferentes de nós. De alguma maneira, me parece sábio e, possivelmente, uma pré-condição para a justiça social, que re-habilitemos a humildade epistêmica no seio de nossas práticas educacionais e sociais.*
Em seu blog, Stephen Mumford nos dá uma idéia de o que está em jogo no caso de verdades incognoscíveis (notem, no entanto, que ele não está falando especificamente do caso de Allen ou similar, mas sim de verdades incognoscóveis em geral). Ele diz:
Eu não tenho dúvida de que alguns dirão que isso não importa. Se não temos como saber qual das duas opiniões é verdadeira, há alguns que dizem que é uma escolha sem sentido. Alguns de nós, entretanto, não pensamos assim. A existência dessas verdades incognoscíveis, além de nossa capacidade de apreensão, nos enchem de um sentimento de espanto e fascinação. E um pouco de humildade epistêmica não é algo ruim, afinal.*
Isso não quer dizer que a discussão de casos como o de Woody Allen deva ser "tucanada". Mas imaginação moral e humildade epistêmica continuam, de alguma maneira, sendo vistas como características da pessoa sábia. Às vezes, o trabalho delas é apenas dissuadir as pessoas de, num afã de querer parecer descoladas, escrever bobagens em blogs, no twitter, no Facebook etc. Às vezes, o melhor a fazer pode ser nos resguardar humildemente em uma posição de assombro, espanto, fascínio e admiração em relação a opiniões que não podemos construir. Não parece sábio sacrificar virtudes em prol da web 2.0.
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* traduções minhas.
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